domingo, 20 de junho de 2010

OBTUÁRIO


Sedan, com os filhos em foto de 1965: chofer da Companhia Manga e amante da música (*)

Morre Joaquim Sedan, o caminhoneiro que abraçou o saxofone


O manguense Joaquim Sedan não tem menção no Google nem registrou em CD nenhum dos acordes que conseguiu retirar do inseparável saxofone. Uma pena. Mas Sedan não tinha mesmo veleidades ao estrelato. Sua relação com a música estava mais para a sina de um apostolado. Considero o sax instrumento dos mais nobres no reino dos bemóis e sustenidos e Sedan conseguiu dominá-lo com razoável aptidão, considerado que a esse mister só sobraram horas vagas e extenuante dedicação. Se mesmo hoje é impossível viver de música nos sertões do Norte de Minas, imagine há 50 anos.

Joaquim Ferreira de Souza, o Sedan, se foi, aos 79 anos, na manhã friorenta do último domingo, dia de jogo da seleção na Copa de Mundo e vésperas de mais um solstício de inverno, o rito de passagem entre as estações do meio de ano. Sua despedida coincidiu com o final de mais um outono. Se não ficaram registros dos seus acordes, ele será lembrado, contudo, pelos contemporâneos de outras boemias, testemunhas auriculares das quase cinco décadas em que esse caminheiro de profissão se aventurou pelo universo mágico da música, sempre na condição de tenaz autodidata.

Sedan nos deixou no mesmo diapasão com que tocou a vida, modestamente, mas com a certeza do dever cumprido. Sem ele, os carnavais manguenses não serão os mesmos. Porque se é possível substituir os sons do seu saxofone na banda Cebola Quente, o mesmo não vale para seu carisma e força de vontade. Os da geração mais recente também puderam presenciar seu esforço para não deixar morrer as marchinhas que animaram foliões de outros carnavais. Para quem acredita na possibilidade de vidas futuras, fica a esperança de que Sedan vai ficar por aí, disponível para tocar em novas serenatas.

Discípulo do maestro João Moreira, que tinha formação mais clássica e deixou como legado as melodias dos hinos a Manga e ao Ginásio, Sedan percorreu outra raia na seara musical: tinha ouvidos afinados e a obstinação dos apaixonados pela música. O jornalista e escritor manguense Carlos Diamantino Alkmim recorda dos seus primeiros sopros no saxofone, dos ensaios solitários ainda nos primeiros anos da década de 1960 do século passado, quando repetia a mesma nota até á exaustão. Desafina daqui, teima dali até conseguir o melhor tom.

O caminhoneiro que sonhava com a música entrou algum tempo depois para a banda comandada pela batuta de João Moreira, que teve seu ápice ao tocar nos festejos do centenário de Januária, em 1960, ao lado da Banda dos Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro, especialmente convidada para a ocasião. O Cebola Quente é remanescente dessa formação que, se não chegou a ser a nossa Big Band ao estilo americano, dava um orgulho danado aos filhos da terra.

O músico de horas vagas foi pioneiro em outro campo. Sedan foi o primeiro manguense a desfilar orgulhoso pelas poucas ruas daquela Manga que não tinha luz elétrica nem calçamento ao volante um caminhão Chevrolet zero quilômetro. Ele começou a vida como chofer de caminhão (do francês choffeur, expressão que nem existe mais) da extinta Companhia Manga Industrial e Exportadora. Foi um período de certo vigor para a economia local, quando a vida da cidade girava em torno da Companhia, tentativa de capitalistas cablocos em industrializar no município a tão sonhada industrialização que animavam os anos JK. Rei da boleia naquele período, Sedan era um dos responsáveis pelo transporte do algodão das fazendas para a indústria e depois dos caroços e fardos até o Cais do Porto para o embarque.

Com o fim do ciclo do algodão, ele seguiu caminhoneiro. Marca de progresso do período em que o transporte no município era feito no lombo de burros e em carros de boi, o velho Chevrolet azul de Joaquim Sedan seria parte da paisagem da Avenida Tiradentes por muito tempo ainda, mas acabou superado também ele pela marcha incólume do tempo e acabou por aí em algum ferro-velho. Para o seu lugar veio o velho Fusca azul que, imagino, deva ter acompanhado o ex-caminhoneiro até o fim.

Sedan também foi autodidata nas lides da mecânica de caminhão. Perdi a conta do número de vez que o vi, capô aberto, a apertar porcas e arruelas na missão de prolongar a vida útil do velho companheiro de aço e ferro. Eram ocasiões para uma interrupção rápida no seu trabalho e de rápidas conversas sobre coisas banais do cotidiano daqueles anos 80 e 90, quando pude perceber em Sedan raciocínio rápido e tirocínio de uma mente arguta e aberta ao novo. Uma mancha escura do óleo de motor que caia do velho caminhão naquela oficina improvisada a céu aberto ficou incrustada por muito tempo sobre os paralelepípedos da avenida, formando uma espécie de montículo com aparência de massa asfáltica, dando outro tipo de relevo às lides de Sedan.

O musical Sedan conseguiu transmitir em graus variados seu pendor e intimidade com as sete notas a sete dos oitos filhos que teve com a companheira de jornada, dona Geny Correia de Souza. Mistura que resultou na turma mais musical da comuna barranqueira, admirada pelos saraus que promovia em encontro ocasionais de férias ou em datas festivas do calendário familiar.

Na crônica “Sedan, uma grandeza singela”, publicada em julho de 2005 no extinto jornal “Cidades de Minas”, o jornalista Carlos Pereira, de Belo Horizonte, anotou: “Assim como peixe não sabe que a água é molhada, como costuma dizer o escritor Nilseu Martins, Sedan deve ignorar sua importância para a história cultura de Manga. [sic] Desconhece, com certeza, como é bom para todos saberem que, no Carnaval, esse ex-caminhoneiro, rompedor das então poeirentas estradas deste país, estará esquentando os desfiles do bloco Cebola Quente com seu potente e afinado sax”.

O corpo de Sedan foi sepultado no cemitério local no final da manhã desta segunda-feira. Seu saxofone não vai animar o próximo Carnaval como queria o cronista, mas seu ideal deve seguir em frente pelas mãos dos herdeiros do seu talento e dos operários não remunerados da causa musical. Sedan parte com seu velho Chevrolet azul para uma dimensão em que o tempo não mais importa. Vai na boleia, todo zeloso do seu caminhão, a explorar, quem sabe, outras galáxias e a animar novas alvoradas com a melodia dos seus sopros. Seu saxofone fará falta nesses dias do reinado das vuvuzelas e seus estrondos antimusicais.

(*) Foto: arquivofamília/cedida ao Blog pelo escritor Carlos Diamantino Alkmim

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