terça-feira, 26 de agosto de 2008

Da arte de fatiar melancias e outras harmonizações


Gastronomia gentil: o petista Virgílio Guimarães durante palestra em Tiradentes (Foto: Renato Lopes)


Viagem breve com final não previsto. Fui parar na bucólica Tiradentes no último final de semana por conta da lotação no vôo de retorno entre Montes Claros e Belo Horizonte, no domingo, 24/08. Poupo o tempo aos da geração Google para dizer que bucólico é sinônimo para campestre ou pastoril e relativo à natureza. Infalível, o Google também mostra que meio mundo já usou o adjetivo "bucólico" para descrever a histórica cidade mineira, de modo que já começo esta crônica sem o traço da originalidade.

Mas eu ia dizendo que um trabalho de consultoria jornalística para o deputado estadual Paulo Guedes (PT) foi a causa de rápida esticada até ao Norte de Minas. Tudo correu bem com os vôos entre Brasília e BH, além do trecho de ida entre a capital de todos os mineiros e Montes Claros. O busílis foi a volta até BH, onde faria a conexão que me traria de volta para casa.

Mas havia um Plano "B". Fui acomodado em aeronave bimotor como carona do deputado federal Virgílio Guimarães (PT-MG), que também estava na região parra compromissos da campanha municipal. O comandante do avião, sujeito de prosa solta, não parava de se vangloriar de já ter pilotado, em andanças pelo paísm, para metade dos papas da nossa República nas últimas décadas. Casos de Fernando Collor de Mello, quando se investiu de poderes para caçar incautos marajás do Oiapoque ao Chuí, e de Lula, no tempo em que o agora presidente não passava do sapo barbudo, apelido que lhe pespegou Leonel Brizola em página notável da nossa crônica política.

Animado, o piloto disse ter visto em Lula algo mais que um simples passageiro incidental. Viu nele, já naquela ocasião, a centelha presidencial -- no que me pareceu mais uma boutade ou uma dessas previsões sobre fato já dado e passado.

Mas voltemos ao tema. Nosso destino, antes de retornar a BH, era Tiradentes, orgulhosa sede do 11º Festival Internacional de Gastronomia. O deputado Guimarães era convidado da organização do evento para proferir a palestra "Gentilezas gastronômicas" e outra oficina em que ensinou aos presentes alguns segredos da harmonização da água com ingredientes os mais diversos – caso de um molho de pimenta comprado de última hora em casa comercial local e que parece não ter surtido o efeito esperado pelo petista. A moça escolhida para provar da mistura improvável fez cara de quem não gostou.

É preciso acrescentar que o parlamentar mineiro, além de versado em assuntos de finanças e tributação aqui em Brasília, também é entendido nas sutilezas das artes culinárias e foi um dos chefs convidados para garantir brilho ao festival tiradentino. O homem não fez feio. Discorreu com prazer genuíno sobre a evolução do homo sapiens no quesito a arte de comer e comer bem.
Para ilustrar o tema, lembrou em rápida exposição do costume ancestral de abater o animal destinado a forrar o estômago com vigorosas cuteladas e de devorá-lo sem maiores cuidados, coisa que causa espécie aos contemporâneos deste nosso atual estágio da civilização. A atenta platéia extrapolava em boa medida o número de assentos preparados pela organização do evento sob a sombra de ampla tenda, dessas usadas em feiras e convenções.

Em resumo, Guimarães deu pistas dos motivos que levam muita gente, sem faltar os nouveau riche, a pagar uma baba pelas produções de cozinheiros renomados, desses que preparam acepipes multicoloridos mais afeitos a agrado dos olhos do que propriamente para fornimento dos estômagos dos abobalhado dono do cartão de crédito que vai ao caixa pagar a fatura.

Não cheguei ainda ao patamar de emergente, mas já comi alguma coisa do gênero nessas minhas andanças vida afora. O que posso testemunhar é que não achei nada comparável com o frango ao molho pardo que a minha mãe prepara em panela de ferro no velho fogão à lenha do sítio que fica no aprazível vale do rio Itacarambi, em esquecido recanto do extremo mais ao norte dessas Minas Gerais.

O que só corrobora a tese do mestre-deputado de que a simplicidade pode surpreender quando o assunto é comida. Não quero e nem posso cometer a ingratidão de desmerecer o entusiasmo sincero de Virgílio Guimarães, que trata o assunto com o mesmo status da paixão com que se dedica à política, pelo que pude perceber nas poucas horas de nossa eventual companhia.

Paramentado com aquela espécie de bata impecavelmente alva, onde se lê "Chef VG" em bordado feito à mão, o chapéu alto à moda de um gorro na cabeça, ele foi o tempo todo assistido em seu trabalho por atenta entourage, em que se destacava um diligente filho e a nora, além de amigos e assessores, todos muitos compenetrados em suas funções de deixar tudo à mão do chef ao mesmo tempo em que se revezavam para distribuir a produção virgiliana para a degustação dos presentes. Toda a assessoria do político muito sintonizada com a devoção ritual que ele dá ao seu hobby. Cozinhar, Virgílio não cozinhou nem era esse o objetivo de sua performance.

Este blogueiro de horas vagas não suspeitara haver tanta ciência e zelo calculado no ato banal de se partir ao meio uma reles melancia. O petista Virgílio distribuiu dicas para o leigo fatiar e servir com dignidade a fruta tropical em sintonia com rigoroso método, capaz de evitar que os comensais cuspam fora aquelas sementes escuras em almoços coletivos ou em suas recepções de gala, gafe considerada ofensiva entre os habituès de locais que zelam pelos nomes inscritos em suas fachadas.

Enquanto o deputado dividia com a platéia seu douto saber sobre os muitos benefícios da gastronomia gentil, recordei minhas muitas togloditices quando em menino. Era um tempo em que uma melancia não tinha pretensões maiores, de acordo com seu existir ontológico, aqui adaptado para a coisa em lugar de seres.

Vi o gesto ritual do deputado Virgílio, que evita partir a melancia em duas bandas, pois antes prefere tirar dois nacos de suas extremidades, e bateu arrependimento das muitas vezes em que, com um golpe seco e impiedoso, arrebentei deliciosas dessas frutas no cocuruto de um toco qualquer, desses que sobram no roçado após a queimada para limpeza, com o critério único da urgência urgentíssima que nos impunha a sede e a fome de ocasião. Repetia gesto ancestral, por não saber quão grande e misterioso é esse mundo de meu Deus, com seus códigos de conduta em que se insere, inclusive, o descascar de um abacaxi .

Pra terminar o relato do dia agradável no sopé da Serra de São José, por onde se espalha a pequena Tiradentes, preciso acrescentar que ainda durante o vôo o deputado Guimarães falou das suas convictas certezas sobre a harmonização entre os inconciliáveis PT e PSDB rumo à vitória do candidato Márcio Lacerda (PPS) na disputa pela Prefeitura de Belo Horizonte.

Certezas retiradas de pesquisas internas, algo tão ou mais melindroso e de rigor científico quanto o preparo da melancia antes de ser comida. A candidatura de Lacerda tem as bênçãos muito "padrinhas" do governador Aécio Neves (PSDB) e do petista Fernando Pimentel. Otimista com a eleição do neo-correligionário, o deputado mineiro acha que o eleitor de BH pode ser comparado àquela moça na janela, que sonha com o príncipe encantado que vai finalmente desfilar na estrada montado em imponente cavalo branco. Para o deputado, Lacerda é esse cara, não só por conta dos padrinhos multipartidários, mas por seu arrojo e luz própria.

A trupe da qual fiz parte por puro acaso encerrou a jornada gastronômica no Viradas do Largo, casa filiada à Associação dos Restaurantes da Boa lembrança. O Viradas está entre os estabelecimentos que oferecem pratos de cerâmica pintados à mão que o visitante leva para a casa como recordação da experiência sensorial que realizou quando experimentou a sugestão do chef.


Comida mineira de qualidade, bom vinho e champanha e já estávamos prontos para outra. Vencido pelo cansaço, o deputado Virgílio se entregou a uma rápida soneca ali mesmo na mesa do restaurante. Cabeça pendida sobre o peito, cochilo solto, o deputado parecia sonhar com novas aulas de platitudes gastronômicas, segundo sua própria definição. Ou, quem sabe, também sonhava com o cavalo branco em que Lacerda vai arrebatar o eleitorado de Belô e liquidar a fatura já no primeiro turno.
 
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